II - Lepra

Argh, por mais que eu corra esse desgraçado continua vindo. Ele não se cansa?

Era madrugada e Caio corria desesperadamente. Um vulto o perseguia sem dar trégua por entre árvores frondosas. A luz difusa revelava um ser encapuzado que segurava um enorme machado e andava tranquilamente a passos largos, respirando em longas inspirações e gargalhava alto a cada vez que Caio se virava.

Caio corria como se o espírito de um campeão olímpico tivesse se apossado do seu corpo mas não adiantava, estava ficando cada vez mais cansado.

- Maldito seja!

A lama empapava os sapatos de Caio e o fazia afundar lentamente, cada perna agora pesava uma tonelada, e ainda havia um maldito vento frio que lhe cortava a alma e congelava os ossos, mesmo assim, o suor lhe descia à testa sem parar.

- Caiozinho! Caiozinho! Não adianta correr, eu lhe pegarei de toda forma, venha aqui rapaz! De quem você tem tanto medo? - O ser falava pausadamente, como se estivesse narrando decolagens de vôos em um aeroporto qualquer.

- Atenção! Passageiro com destino ao inferno, sua cadeirinha já está quentinha. Hu-hu-hu, aperte o cintinho, não vamos querer acidentes na decolagem...

Caio parou de correr. Não adiantava aquela afobação toda. Por mais que corresse, aquele ser cada vez mais ficava próximo. Jogou-se ao lado de um tronco podre, fazendo uma camuflagem com um pouco de folhagem. Com sorte, pensou ele, o camarada passaria batido.

- Menino mal, vai ficar sem janta. Papai vai ficar zangado. Hu-hu-hu, coma a papinha, abra o bocão, vamos, vamos...

Aquela voz se propagava por todo lugar, penetrando no cérebro de Caio, parecia que uma mão invisível queria esmagar aquele resto de massa cinzenta. Caio tentava segurar o seu fôlego, mas tremia muito, tremia como uma criança que se encontra sozinha na escuridão de seu quarto depois um longo pesadelo.

- Pê-pê-rê-rê-pê-pêêê!!! Um cérebro gostozinho eu vou comer.

A figura caminhava e batia vigorosamente nas árvores com a parte rombuda do machado, criando um eco terrível.

- Dam, dem, dimmmm!!! Um lombinho humano pra mim.

O ser parecia estar absorto em seu próprio mundo, lambia o corte que fazia nas árvores num movimento de vai-e-vem e salivava como se estivesse degustando um verdadeiro manjar dos deuses. De repente parou, descolando a língua da árvore, levantando a cabeça e começando a farejar como um rato, mas na verdade, ele era um gato e Caio, apenas um ratinho acuado.

- Miau, miau, miau. Eu vejo um ratinho num espeto com sssaaallllllllll! - A palavra sal soou como se saísse da boca de uma cobra, lenta e sibilante.

Caio sentiu que os passos se aproximavam, ele tinha que sair daquele inferno de qualquer jeito, não se lembrava de nada que tinha acontecido antes, parecia que tinha sido jogado de uma só vez ali, nascido naquele exato momento e naquela situação.

Quando pensou em levantar-se e tentar uma nova fuga, aquela coisa o deteve, ele tentou ainda lutar, mas o homem era mais forte do que ele, e estava caindo sobre o seu corpo. Caio não teve nem a chance de tentar se levantar. O sinistro ser tinha se ajoelhado sobre seu tronco e o mantinha preso, seu pulmão se fechava, era difícil respirar, sua caixa torácica era comprimida a cada instante. Caio ouvia suas costelas estalarem como gravetos queimando em uma fogueira, a dor era insuportável e o homem sem rosto ria de forma ensandecida.

- Me mate de uma vez seu maldito! - Caio sentia o gosto adocicado do sangue em sua boca, a dor era excruciante, mas ele não desmaiava e se perguntava como era possível ele ter tamanha resistência, logo ele que nunca conseguiu correr dez metros sem se cansar.

O ser calmamente baixou o capuz e Caio pode observar de perto o horror que tomava conta da face daquele ente. O homem parecia ter contraído uma espécie de lepra do pior grau possível, na opinião de Caio, aquele homem seria um grande caso de estudo da medicina. Uma espécie de pus verde escorria de fendas que um dia deveriam ter abrigado olhos e um pedaço de carne putrefata pendia de um dos cantos da bochecha da criatura onde pequenos vermes passeavam livremente por debaixo do que poderíamos chamar de pele.

Caio cerrou os olhos e berrou com força, isso vai passar, isso tem que passar, mas da boca dele só saiu algo ininteligível. Seu corpo chegara em um limite em que a dor já o tinha abandonado, não conseguia sentir nenhuma parte dele, minha coluna teria se partido? Sentia que era apenas uma cabeça dissociada de um corpo. Quando finalmente abriu os olhos, aquele homúnculo o segurou pelo pescoço, o levantando de uma só vez. Seus pés não tocavam o chão e Caio pressentia que nunca mais tornaria a pisar naquela lama com vida.

- Dim, dim,dim. Quero essa cabeça pra mimmmmm!!! - O homem desfigurado segurava Caio firmemente contra uma grande árvore, aquela mão nodosa desfigurada pela artrite possuía uma força descomunal. O leproso quase que colava o seu rosto no dele, observando, cheirando e por fim lambeu o rosto de Caio, esboçando um sorriso senil, desdentado. Por fim, enquanto ajeitava o machado na mão esquerda Caio pensou que seu fim tinha chegado.

No momento em que fechou os olhos para receber o golpe final, um som de um telefone ecoou pela floresta. Começou como um baixo tilintar, se assemelhando a um chirriar de grilos, mas cada vez mais subia de volume, em pouco tempo uma orquestra de telefones tocava na floresta, retumbava por todos os lugares envolvendo Caio e o leproso como se aquele som fosse uma densa névoa.

Caio sentia que se quisesse, poderia tocar naquele som ensandecido. A criatura depois de um momento ficou tremendamente abalada e soltou Caio levando as mãos firmemente ao lado do rosto para tentar tapar os ouvidos, sua face se contorcia numa careta horrível. Caio tentou se levantar, mas escorregava na lama, estava fraco, e aquele som o deixava ainda mais mortiço. Por fim, conseguiu ajoelhar fazia a mesma coisa que o ser disforme, mas não conseguia amenizar muita coisa. Olhou de relance para a criatura, e esta tentava lhe falar algo.

- At.. nda... a mer... des... ..... fone...

- Ate.. ... a ...da desssss... ..... telef...

Caio não conseguia ouvir nada a não ser os malditos telefones que continuava a tocar furiosamente. Tentou se concentrar ao máximo em meio a aquele caos e olhava sem piscar para os lábios deformados do leproso, até que captou aquela mensagem: ATENDA A MERDA DESSE TELEFONE!

Sim, havia vários telefones tocando ao mesmo tempo, analógicos, digitais, todos faziam um trim trim numa cacofonia infernal, mas, como ele iria atender algo que sabia que existia mas que não via? E então, algo inusitado aconteceu, se é que poderia haver mais algo inusitado do que infindáveis telefones estarem tocando numa floresta no meio da madrugada.

O leproso enfiou a mão por baixo do nojento sobretudo que usava e procurava algo, o rosto se desfigurava ainda mais, o som dos telefones estava o atingido mais do que o próprio Caio, e uma espécie de sangue verde escorria por um buraco que seria o seu ouvido.

Meu Deus, o que ele está procurando? Uma arma?

Por fim, o leproso conseguiu o queria. Um celular.

Estendeu o aparelho que era estranhamente normal para Caio. Este, fitava telefone com olhos esbugalhados, o celular parecia que era uma arma alienígena ou algo que ele nunca tinha visto antes. Tremia, de frio e de espanto, mamãe tenho medo do escuro, não me tranque neste quarto sozinho...

Por fim se apoiou em um resto de coragem que ainda havia, segurou o aparelho, limpou a mão que estava cheia de lama na calça e levemente apertou o pequeno botão verde onde se via a palavra ON, o botão gerou um bip e Caio ainda trêmulo levou o celular ao seu ouvido, apoiando o fone com as duas mãos.

- Alô? - a voz saiu pastosa e sem vida e Caio estranhou o som da sua própria voz, parecia que aquele alô tinha saído de uma caixa de som defeituosa.

Era dez e vinte da manhã, fazia calor e o telefone celular de Caio tocava em seu apartamento.

- Minha lepra é o seu pecado... – Uma mansa e profunda voz se fez ouvir do outro lado da linha.

Barba Branca disse... said:

17 de junho de 2009 às 10:54  

excelente cara!
Adorei... maior clima!

Musashi disse... said:

18 de junho de 2009 às 06:03  

Valeu Wagner! :)

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