III - Carmim

- Ahhhhh! – Caio gritou histericamente no celular como se o mundo estivesse chegado ao fim e uma lua estivesse vindo de encontro à sua cabeça. Ele era o último homem da face da terra a ser esmagado por um astro celeste.

Abriu os olhos e percebeu que não estava mais em nenhuma floresta, e que não havia nenhum leproso com um machado a lhe perseguir, tudo aquilo tinha sido apenas um pesadelo. Seus olhos piscavam rapidamente, sua pupila tentando se acostumar com o cenário. Estava molhado de suor, deitado na cama do seu velho quarto e segurava fortemente o celular como se o fosse esmagar, a cabeça parecia que ia explodir de tanta dor, o seu cérebro deveria ter encolhido e o coração se instalado no seu crânio.

- Alô, alô? Caio é você? – uma voz conhecida soava aos ouvidos de Caio.

- Sim, sou eu. – Caio respondia, ainda assustado, respirava rápido – Pode falar Rafael, estou lhe ouvindo bem.

- Fiquei pensando que algo de errado estava acontecendo com você. Que grito foi esse?

- Grito? Há, foi na TV aqui, estava vendo um filme do Jason. Sabe como é, adoro essas coisas. Sangue e carnificina gratuita, além de mulheres lindas. – Caio tentava disfarçar o medo, mas ainda havia muita tensão na sua voz. Titubeava.

- Pensei que você não gostava desses filmes sem profundidade. Mas deixa pra lá. Liguei para saber se você ainda estava vivo depois de ontem. E também quero saber se você quer passar aqui na editora para a gente discutir melhor sobre o assunto do novo livro, existem muitas pessoas querendo apoiar essa iniciativa...

O discurso de Rafael foi interrompido.

- Rafael, Rafael... Não sei se posso escrever sobre isso, eu iria me curvar a algo muito baixo.

- Não fale bobagem homem. Te espero aqui na editora, venha logo! A gente sai para almoçar e conversamos melhor. Não aceito um não como resposta. – Rafael era sincero e Caio sabia que aquele era seu único amigo, o único que ainda tentava o ajudar.

- Tudo bem então. Você parece um chiclete no sapato, credo. Mas uma coisa é certa, não lhe dou esperanças. – A voz de Caio soava fraca, e o mundo ainda girava rapidamente ao seu redor. Um pássaro tinha se alojado no seu crânio e se alimentava de seus miolos. Cada vez que ele falava as pontadas apareciam nos fundos dos olhos.

- Bem, serei o chiclete até você assinar o contrato. Te vejo daqui a pouco!

Rafael bateu o telefone e Caio jogou imediatamente o celular na parede mas ele não sofreu nenhum dano aparente. Santo Deus, como essa porcaria é resistente!

Caio ficou parado na cama, deitado de barriga para cima, olhando para o seu teto. Um teto bastante familiar. Ficou observando vagarosamente aquele teto que uma vez já foi branco e agora estava sendo tomado por uma espécie de mofo negro, que se alastrava como um câncer.

Cerrou os olhos por bons minutos, e por fim o mundo parecia que ia diminuindo de rotação. Por favor meu senhor, pare esse carrossel que eu quero descer. O estômago de Caio embrulhava, sentia como se um rato tivesse se alojado nas suas entranhas e devorava tudo com bastante vigor, a qualquer momento ele poderia sair por seu umbigo.

Caio rastejou até a beira da cama e se pôs de pé. Bambeou um pouco, sentiu-se fraco e sentou lentamente com uma mão ao lado das costas, como um idoso sofrendo de cálculo renal. Respirou fundo. Sentia-se como que suas forças vitais tinham sido sugadas.

Há quanto tempo não faço uma refeição decente? Acho que ao menos o almoço de Rafael eu irei aceitar.

Tateou o seu supercílio e sentiu a dor por baixo do curativo, rezou para que aquilo não inflamasse e abrisse uma vala no seu rosto, estava na pior fase da sua vida, mas ainda prezava sua aparência física. A boa aparência é a única coisa que não pode ser roubada, dizia sua falecida mãe.

Ergueu-se novamente, inspirou uma boa quantidade de ar e se espreguiçou gemendo algo indizível quando seu supercílio esticou. Lentamente abriu a janela do quarto e uma lufada adentrou-se, renovando o ar pesado do cômodo.

Havia um céu azul sem nuvens lá fora e Caio certamente odiava muitas coisas na vida. Odiava esses dias. Odiava o calor, odiava o sol que lhe fazia arder os olhos, odiava aquelas pessoas frívolas que ficavam a semana toda queimando sua pele na beira da praia como se fossem espetos de carne.

Ele já havia pensado várias vezes em sair do Rio de Janeiro, abandonar aquele apartamento decrépito e ir para o sul. Sim, o sul é civilizado. Mas, algo ainda o segurava ali e ele não sabia identificar bem o que era. Talvez, essa ojeriza o alimentasse e no fundo da sua mente, sabia que necessitava desse manjar e poderia não encontrar em nenhum lugar do mundo a não ser nesta cidade. Ela era um mal necessário.

- Seus malditos sugadores descerebrados!!! Que peguem um câncer de pele e derretam até virarem uma massa pastosa! – vociferou pela janela. Gritar dessa forma era um exercício matinal que ele adorava. Pena que raramente acordo pela manhã.

Arrastou lentamente seu corpo até o banheiro, o rato e o pássaro estavam famintos. Ele precisava de um bom banho gelado para despertar totalmente.

Retirou o curativo e olhou o corte no espelho. Aquilo estava feio e ainda estava aberto, mas ia cicatrizar normalmente. Assim ele esperava. Seus olhos apresentavam olheiras vigorosas, seus olhos azuis estavam sem brilho e a barba estava por fazer.

Abriu o chuveiro e pulou de uma só vez. A água estava fria como gelo, e ele ofegava, soltando o ar pela boca. Fechou os olhos, sentindo a água correr por seu corpo, ele gostava da sensação e de repente, a imagem do leproso apareceu. O leproso sorria um sorriso de uma boca sem dentes. Maldita bebida, vou ter que dar um jeito nisso, se eu tiver outro sonho desses, terei um infarto.

Quando abriu os olhos percebeu algo estranho tinha acontecido. A água que descia por sobre o seu corpo não era água, e sim algo como sangue. Na verdade, era sangue.

Fechou velozmente o registro do chuveiro com nojo, mas o líquido ainda continuava a jorrar e aumentava a pressão a cada segundo, seu chuveiro parecia que ia explodir. Aquele cheiro e aquela textura pegajosa eram de sangue. Ele não estava enganado.

O estômago se comprimiu, e ele pensou que ia vomitar. Maldito rato. Respirou fundo e se segurou tocando os azulejos.

Maldição, que diabos é isto? Estou sonhando novamente?

Esbofeteou-se e soube que se aquilo era um sonho, era o sonho mais lúcido que alguém na vida já podia ter tido. O sangue inundava o box do banheiro e um desespero começou a tomar conta do seu cerne, seu coração bombeava vigorosamente, Caio podia sentir sua força. Reuniu forças, abriu a porta de vidro e fechou o registro geral do banheiro com toda força. Mas o sangue não parava de escoar pelo chuveiro.

Ainda tomado de medo, abriu lentamente a torneira da pia, e tomado por terror, testemunhou que um líquido carmim era cuspido em fortes doses. Havia ar na tubulação e aquele som fazia com que a torneira estivesse viva, vomitando sangue.

Isso não está acontecendo! Estou ficando doido, meu Deus, o que está acontecendo comigo?

II - Lepra

Argh, por mais que eu corra esse desgraçado continua vindo. Ele não se cansa?

Era madrugada e Caio corria desesperadamente. Um vulto o perseguia sem dar trégua por entre árvores frondosas. A luz difusa revelava um ser encapuzado que segurava um enorme machado e andava tranquilamente a passos largos, respirando em longas inspirações e gargalhava alto a cada vez que Caio se virava.

Caio corria como se o espírito de um campeão olímpico tivesse se apossado do seu corpo mas não adiantava, estava ficando cada vez mais cansado.

- Maldito seja!

A lama empapava os sapatos de Caio e o fazia afundar lentamente, cada perna agora pesava uma tonelada, e ainda havia um maldito vento frio que lhe cortava a alma e congelava os ossos, mesmo assim, o suor lhe descia à testa sem parar.

- Caiozinho! Caiozinho! Não adianta correr, eu lhe pegarei de toda forma, venha aqui rapaz! De quem você tem tanto medo? - O ser falava pausadamente, como se estivesse narrando decolagens de vôos em um aeroporto qualquer.

- Atenção! Passageiro com destino ao inferno, sua cadeirinha já está quentinha. Hu-hu-hu, aperte o cintinho, não vamos querer acidentes na decolagem...

Caio parou de correr. Não adiantava aquela afobação toda. Por mais que corresse, aquele ser cada vez mais ficava próximo. Jogou-se ao lado de um tronco podre, fazendo uma camuflagem com um pouco de folhagem. Com sorte, pensou ele, o camarada passaria batido.

- Menino mal, vai ficar sem janta. Papai vai ficar zangado. Hu-hu-hu, coma a papinha, abra o bocão, vamos, vamos...

Aquela voz se propagava por todo lugar, penetrando no cérebro de Caio, parecia que uma mão invisível queria esmagar aquele resto de massa cinzenta. Caio tentava segurar o seu fôlego, mas tremia muito, tremia como uma criança que se encontra sozinha na escuridão de seu quarto depois um longo pesadelo.

- Pê-pê-rê-rê-pê-pêêê!!! Um cérebro gostozinho eu vou comer.

A figura caminhava e batia vigorosamente nas árvores com a parte rombuda do machado, criando um eco terrível.

- Dam, dem, dimmmm!!! Um lombinho humano pra mim.

O ser parecia estar absorto em seu próprio mundo, lambia o corte que fazia nas árvores num movimento de vai-e-vem e salivava como se estivesse degustando um verdadeiro manjar dos deuses. De repente parou, descolando a língua da árvore, levantando a cabeça e começando a farejar como um rato, mas na verdade, ele era um gato e Caio, apenas um ratinho acuado.

- Miau, miau, miau. Eu vejo um ratinho num espeto com sssaaallllllllll! - A palavra sal soou como se saísse da boca de uma cobra, lenta e sibilante.

Caio sentiu que os passos se aproximavam, ele tinha que sair daquele inferno de qualquer jeito, não se lembrava de nada que tinha acontecido antes, parecia que tinha sido jogado de uma só vez ali, nascido naquele exato momento e naquela situação.

Quando pensou em levantar-se e tentar uma nova fuga, aquela coisa o deteve, ele tentou ainda lutar, mas o homem era mais forte do que ele, e estava caindo sobre o seu corpo. Caio não teve nem a chance de tentar se levantar. O sinistro ser tinha se ajoelhado sobre seu tronco e o mantinha preso, seu pulmão se fechava, era difícil respirar, sua caixa torácica era comprimida a cada instante. Caio ouvia suas costelas estalarem como gravetos queimando em uma fogueira, a dor era insuportável e o homem sem rosto ria de forma ensandecida.

- Me mate de uma vez seu maldito! - Caio sentia o gosto adocicado do sangue em sua boca, a dor era excruciante, mas ele não desmaiava e se perguntava como era possível ele ter tamanha resistência, logo ele que nunca conseguiu correr dez metros sem se cansar.

O ser calmamente baixou o capuz e Caio pode observar de perto o horror que tomava conta da face daquele ente. O homem parecia ter contraído uma espécie de lepra do pior grau possível, na opinião de Caio, aquele homem seria um grande caso de estudo da medicina. Uma espécie de pus verde escorria de fendas que um dia deveriam ter abrigado olhos e um pedaço de carne putrefata pendia de um dos cantos da bochecha da criatura onde pequenos vermes passeavam livremente por debaixo do que poderíamos chamar de pele.

Caio cerrou os olhos e berrou com força, isso vai passar, isso tem que passar, mas da boca dele só saiu algo ininteligível. Seu corpo chegara em um limite em que a dor já o tinha abandonado, não conseguia sentir nenhuma parte dele, minha coluna teria se partido? Sentia que era apenas uma cabeça dissociada de um corpo. Quando finalmente abriu os olhos, aquele homúnculo o segurou pelo pescoço, o levantando de uma só vez. Seus pés não tocavam o chão e Caio pressentia que nunca mais tornaria a pisar naquela lama com vida.

- Dim, dim,dim. Quero essa cabeça pra mimmmmm!!! - O homem desfigurado segurava Caio firmemente contra uma grande árvore, aquela mão nodosa desfigurada pela artrite possuía uma força descomunal. O leproso quase que colava o seu rosto no dele, observando, cheirando e por fim lambeu o rosto de Caio, esboçando um sorriso senil, desdentado. Por fim, enquanto ajeitava o machado na mão esquerda Caio pensou que seu fim tinha chegado.

No momento em que fechou os olhos para receber o golpe final, um som de um telefone ecoou pela floresta. Começou como um baixo tilintar, se assemelhando a um chirriar de grilos, mas cada vez mais subia de volume, em pouco tempo uma orquestra de telefones tocava na floresta, retumbava por todos os lugares envolvendo Caio e o leproso como se aquele som fosse uma densa névoa.

Caio sentia que se quisesse, poderia tocar naquele som ensandecido. A criatura depois de um momento ficou tremendamente abalada e soltou Caio levando as mãos firmemente ao lado do rosto para tentar tapar os ouvidos, sua face se contorcia numa careta horrível. Caio tentou se levantar, mas escorregava na lama, estava fraco, e aquele som o deixava ainda mais mortiço. Por fim, conseguiu ajoelhar fazia a mesma coisa que o ser disforme, mas não conseguia amenizar muita coisa. Olhou de relance para a criatura, e esta tentava lhe falar algo.

- At.. nda... a mer... des... ..... fone...

- Ate.. ... a ...da desssss... ..... telef...

Caio não conseguia ouvir nada a não ser os malditos telefones que continuava a tocar furiosamente. Tentou se concentrar ao máximo em meio a aquele caos e olhava sem piscar para os lábios deformados do leproso, até que captou aquela mensagem: ATENDA A MERDA DESSE TELEFONE!

Sim, havia vários telefones tocando ao mesmo tempo, analógicos, digitais, todos faziam um trim trim numa cacofonia infernal, mas, como ele iria atender algo que sabia que existia mas que não via? E então, algo inusitado aconteceu, se é que poderia haver mais algo inusitado do que infindáveis telefones estarem tocando numa floresta no meio da madrugada.

O leproso enfiou a mão por baixo do nojento sobretudo que usava e procurava algo, o rosto se desfigurava ainda mais, o som dos telefones estava o atingido mais do que o próprio Caio, e uma espécie de sangue verde escorria por um buraco que seria o seu ouvido.

Meu Deus, o que ele está procurando? Uma arma?

Por fim, o leproso conseguiu o queria. Um celular.

Estendeu o aparelho que era estranhamente normal para Caio. Este, fitava telefone com olhos esbugalhados, o celular parecia que era uma arma alienígena ou algo que ele nunca tinha visto antes. Tremia, de frio e de espanto, mamãe tenho medo do escuro, não me tranque neste quarto sozinho...

Por fim se apoiou em um resto de coragem que ainda havia, segurou o aparelho, limpou a mão que estava cheia de lama na calça e levemente apertou o pequeno botão verde onde se via a palavra ON, o botão gerou um bip e Caio ainda trêmulo levou o celular ao seu ouvido, apoiando o fone com as duas mãos.

- Alô? - a voz saiu pastosa e sem vida e Caio estranhou o som da sua própria voz, parecia que aquele alô tinha saído de uma caixa de som defeituosa.

Era dez e vinte da manhã, fazia calor e o telefone celular de Caio tocava em seu apartamento.

- Minha lepra é o seu pecado... – Uma mansa e profunda voz se fez ouvir do outro lado da linha.

I - Fênix

- Não! Não e não! - Caio encarava Rafael de uma forma raivosa, tal qual um gato acuado por um cão ensandecido. Suas pupilas pulsavam de tanto nervoso. - Eu não vou escrever porcarias deste tipo. Ainda prezo minha carreira, ou o que restou dela.

- Calma Caio, também não é para tanto. Você há de convir que não tem escrito nada de bom desde que se divorciou, ou melhor, não tentou escrever nem uma linha, e ultimamente, não sei quem rege sua vida, se é você mesmo ou uma garrafa.

- Dane-se tudo! Não agüento tanto lamurio. Eu ainda consigo muito bem escrever da forma que eu quiser e quando quiser. Não vou participar de modinhas, só por que você acha que isso pode dar uma nova guinada na minha carreira. O que você quer que eu me torne agora? Escritor de coluna de revista de pré-adolescentes? Faça me o favor... Ao inferno com todos vocês!!!

Caio levantou-se do sofá e andou trôpego até uma mesinha de canto, onde mantinha algumas garrafas de bebida. Pegou uma e levou à boca, o líquido quente lhe rasgava a garganta, mas para ele, nada importava, aquele ardor era como um alívio à sua mente cansada, queria esquecer de tudo e de todos, queria um descanso final, queria paz.

- Pare com isso homem! - Rafael puxou violentamente a garrafa de uísque das mãos de Caio e este sem esperar procurou forças nas pernas, mas elas não lhe ajudaram em nada. Seus joelhos cederam bruscamente e seu rosto foi de encontro à quina da mesa que lhe servia com tanto gosto.

Rafael rapidamente ajudou Caio a se levantar, mas este não querendo auxílio, empurrou Rafael com um pouco de forças que ainda lhe restava. O supercílio esquerdo estava partido e o sangue descia por sua face, penetrando em seu olho, lhe turvando a visão.

Mas ele simplesmente adorava a situação, o cheiro do sangue lhe inebriava.

- Tá contente agora Rafael? Vamos lá, ria de seu macaco de auditório! Vamos, ria desse fracassado, desse maldito escritor de merdinhas. Vamos lá minha gente! A pergunta que não quer calar! Como esse ameba conseguiu escrever um best-seller? - Ainda cambaleante e tossindo, Caio parecia uma tétrica versão de um apresentador de atrações circenses, parecia procurar algum apoio invisível. Por fim desabou numa poltrona surrada.

- Chega Caio, chega de falar tantas coisas sem sentido. Deixe-me ver o estrago.

Rafael inclinou a cabeça de Caio e olhou rapidamente para o corte. Não era nada grave, mas poderia infeccionar. Foi até o banheiro e olhou as gavetas do armário. No meio de tantos frascos de aspirinas, conseguiu encontrar uma pequena bolsa com esparadrapos, gases e um pouco iodo. Molhou uma toalha e voltou à sala.

Depois de muita reclamação por parte de Caio, Rafael conseguiu limpar o rosto e fazer um curativo, da melhor forma que pôde. Sou um editor, não uma enfermeira de marmanjos.

- Pense na proposta. Você pode pensar que apenas estou aqui por um motivo financeiro, mas ainda tento ser o seu melhor amigo, quero te ver de bem com a vida novamente. Você não pode abandonar tudo e todos dessa forma. – Rafael suplicava.

- Isso não vai dar certo Rafael. Você sabe. Eu nunca tentei ser um escritor da massa. E além do mais, eu não conheço bem este meio, eu só sinto nojo dessas pessoas, esses... adolescentes unilaterais... - Caio estava sentado com a cabeça em suas mãos, os cotovelos apoiavam-se nas coxas, as palavras saiam devagar escorrendo por uma pequena abertura entre os lábios.

- Você sente nojo até de si próprio e isso ainda vai lhe matar. – Rafael retrucou rápido e secamente. Tinha se levantado e olhava a noite pela janela, estavam no 23º andar e uma brisa leve tocava seu rosto, abaixo, a cidade pulsava entre luzes e sons difusos.

- Que me mate então! Seria melhor assim. Vivo ou morto não valho nada!

- Foi só uma forma de falar, não quero nada de mal lhe aconteça, você pode não acreditar nisso, mas ainda vou fazer você dar a volta por cima!

- Queria ter um décimo da sua confiança. - Um esboço de um sorriso brotou no canto da boca de Caio.

Rafael olhou para o relógio que já passava da meia-noite.

- Bem, já é tarde e você precisa dormir. Não é preciso me acompanhar.

- Creio que mesmo que quisesse não conseguiria. Minha cabeça está do tamanho de um balão e meu coração parece que está pulsando dentro dele.

- Durma e pense na minha proposta. Amanhã passarei por aqui, mesmo que você não queira.

- Tudo bem mamãe, eu prometo que vou dormir...

Riram juntos, e Caio se sentiu melhor. Sentiu que ao menos desta vez poderia tentar novamente, afinal, três anos já haviam se passado desde a separação e não agüentava mais aquela situação em que se encontrava, mas era covarde demais para tirar a própria vida e fraco demais para tomar as rédeas do seu destino.

Quantas vezes se pegou pensando em se jogar daquela janela, aquele corpo estranho no ar, se estatelando na grama molhada do orvalho, ali restando apenas um aglomerado de carne esquecido, até que aquela velhinha vindo da sua caminhada matinal se deparasse com aquela figura distorcida e inerte, olhos vitrificados observando o azul do céu... Será que ela gritaria? Ou desmaiaria de uma só vez?

Bem, algo tinha que mudar na vida de Caio, e realmente mudou...

SerialKut – Uma escadaria rumo à insanidade.

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Como caracterizar a sanidade?

Como podemos afirmar que há um padrão de pensamento a ser seguido?

O que determina o nosso comportamento pacífico em uma sociedade?

Há uma tênue linha entre sanidade e insanidade?

E se há realmente um limite, uma vez que penetremos no domínio do insano, poderemos transitar entre os dois lados do muro de forma perfeita?

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